Renato Ferracini

Trabalhando com objetos

O objetivo principal do trabalho com objetos, como pratica o LUME, é de proporcionar ao ator uma espécie de diálogo entre sua organicidade interna e o objeto externo. Esse diálogo dinâmico suscita, no ator, um contato com suas energias potenciais e sua organicidade, a partir das quais surgem matrizes que podem, posteriormente, ser codificadas.
Esse trabalho foi trazido para o LUME por Luís Otávio Burnier, quando trabalhou, na França, com o mímico Ives Lebreton:

Como Yves Lebreton, trabalhamos em nossos treinos basicamente dois tipos de objetos: o bastão e o tecido. Um rígido, de forma fixa e imutável, e outro flexível cuja forma é mutável. Para o treinamento com o objeto é importante desenvolver a escuta de sua dinâmica. Cada objeto tem uma forma, uma espessura, um peso que determinam uma dinâmica muito particular se lançado no ar. Este treinamento visa desenvolver uma relação ator-objeto onde os impulsos das ações são transferidos para o objeto, e a dinâmica espacial do objeto é transferida para o corpo do ator (1994, p. 153).

A matriz inicial do exercício proposto por Ives Lebreton foi apenas a semente do trabalho de dinâmica com objetos. O LUME, hoje, possui uma maneira muito particular de utilizar esse trabalho. Trabalha-se, em princípio, com dois objetos básicos: o bastão e o tecido. Cada um sugere uma dinâmica própria e específica para o ator. O primeiro trabalha com um peso, fazendo com que o ator tenha maior contato com o chão e com sua base. O segundo trabalha com uma dinâmica de “vôo” , fazendo com que o ator expanda o domínio de seu espaço físico, numa espécie de dilatação das possibilidades musculares. Sobre isso fala a atriz Ana Cristina Colla:

Além da dinâmica específica, cada objeto possui também, de acordo com seu formato, peso, ou material que o compõe – imprimindo assim determinado estímulo quando o manipulamos, gerando ações que sem ele não descobriríamos – a capacidade de expandir o universo que nos rodeia, alongando determinada parte do corpo ou imprimindo um peso nunca antes experimentado. Torna-se, no ato da manipulação, uma extensão de nosso corpo, conduzindo-nos pelo espaço se assim o permitirmos ou transformando-se no parceiro de diálogo, em que um fala e o outro responde ou os dois falam ao mesmo tempo, complementando-se. Torna, muitas vezes, o trabalho técnico mais estimulante (Entrevista concedida em 1997).

O trabalho tem início com um simples “sentir” o objeto: sua espessura, seu peso, sua temperatura. Logo depois, passa-se para a manipulação. Nessa segunda fase, deve-se pesquisar as possibilidades espaciais que o objeto propõe, sua relação com o peso/gravidade e as dinâmicas propostas por ele no espaço/tempo. É importante ressaltar, nessa fase, que o ator não deve manipular ativamente o objeto. Deve-se deixar ser conduzido pelo objeto, sendo, portanto, uma relação, em primeiro nível, menos ativa.

Na verdade, essa é uma questão difícil de explicar, pois parece impossível um objeto inanimado conduzir uma pessoa, e realmente é, do ponto de vista, ao menos, da ciência clássica. Mas estamos recorrendo a imagens que possam esclarecer a questão. Na verdade, é como se o objeto fosse animado e passasse a ser uma extensão do corpo do ator, que o conduz pelo espaço. Natsu Nakajima também utilizava essa imagem para explicar o exercício do “fantasma”. Segundo ela, nossas ações físicas deveriam ser conduzidas por um fantasma, e não por nós mesmos. Para isso, o ator deveria anular-se, ser um “nada”, para assim dar espaço a esse fantasma e ser conduzido por ele. Uma espécie de anulação artística. O mesmo acontece em momentos citados acima, no energético e no trabalho com animais, quando o corpo parece conduzir-se sozinho, encontrando a liberdade do psíquico. Parece-me ser uma questão de estado orgânico e energético em que mente e corpo equilibram-se e anulam-se, formando uma totalidade psicofísica.

Podemos aplicar, aqui, o conceito da inércia. Na física, um corpo em inércia tende a manter seu movimento, pois as forças opostas estão anuladas. Um corpo em movimento somente pára quando alguma força, no caso o atrito, é maior que a força oposta que o manteria eternamente em movimento. Para o ator, podemos falar em “inércia dinâmica orgânica” quando ele atinge este foco e este equilíbrio entre as forças energéticas e psíquicas. Seu corpo tende à organicidade quando suas forças psicofísicas anulam-se ou, em outras palavras, equilibram-se.

A partir da manipulação, quando sua inércia dinâmica orgânica é atingida, o ator passa a ter um diálogo vivo com o objeto. É como se o objeto e ator se fundissem em um único organismo. A partir de então, as matizes podem fluir naturalmente.

Nesse momento, quando o diálogo com o objeto é orgânico e vivo, o orientador do trabalho pode tirá-lo do ator, fazendo com que este continue o exercício como se o objeto estivesse ainda com ele. Não confundir esse “se” com qualquer conotação psicológica. Não é a mente, mas a musculatura que deve continuar agindo, com os mesmos impulsos, contra-impulsos, macro e microtensões, como se o objeto ainda estivesse propondo aqueles estímulos.

Depois do trabalho de base com tecido e bastão, o ator pode experimentar qualquer outro objeto como, por exemplo, uma bacia, um graveto, um pedaço pequeno de seda, uma lamparina, pedras ou qualquer outro que o ator ou o orientador deseje experimentar. Deve-se tomar cuidado para que a relação e a dinâmica proposta por esses objetos fuja de seu uso cotidiano. Deve-se trabalhar pensando em dinâmicas de peso/gravidade, densidade e fluidez corpórea que o objeto propõe, e não tentar criar atuações cênicas com ele. Isso geralmente gera clichês. Aqui temos duas possibilidades: primeiramente, o ator pode mudar de dinâmica, “respeitando” o diálogo que o novo objeto propõe, o que o faz treinar mudanças orgânicas bruscas de dinâmicas, questão muito útil para um posterior trabalho de montagem. Por outro lado, o ator pode permanecer na dinâmica antiga, criando com ela uma relação não usual com o novo objeto. Isso faz com que ele redimensione esse novo objeto, usando-o de maneira completamente nova.

Depois, essas matrizes devem ser modificadas, omitindo-se os objetos e fazendo como se eles ali estivessem, e posteriormente trabalhadas na variação de sua fisicidade, escondendo-as, diminuindo-as, segmentando-as. Segue-se mais um trecho de diário de trabalho que substancializa as questões colocadas:

Estava trabalhando com o bastão, quando as ações começaram a entrar numa intensidade muscular muito grande. Nascia um impulso do abdome que fazia todo o meu corpo curvar para frente, como um baque, cada vez que o bastão caía em minhas mãos, depois de eu o ter jogado para o alto. Pensando bem, ele, no início, curvava para a frente porque estava acompanhando o bastão “afundar” com seu peso. Ric tirou o bastão e imediatamente o impulso apareceu, independente da minha vontade. Quase que como uma necessidade, surgiu a vontade de soltar a voz. Soltei e apareceram duas qualidades distintas: quando estava em pé, exatamente antes do impulso, surgiu uma voz que se alternava entre o ressonador de nuca e uma vibração no palato. Parecia uma preparação para o impulso que nascia e jogava meu tronco para baixo. Posteriormente aparecia uma voz de garganta, gutural. Foi uma das matrizes mais fortes que tive até agora. Chamei-a posteriormente, no momento de codificá-la, de Pássaro Ferido.

Em entrevista, a atriz Raquel Scotti Hirson traça um panorama muito esclarecedor para entender a importância do trabalho com objetos em relação às fases da preparação do ator:

A grande utilidade do trabalho com objetos foi poder entender a maneira de fazer com que os elementos do treino fossem eficazmente aproveitados para a cena em si. O trabalho com objetos pegou-me no seguinte momento: através do treinamento energético eu já havia entendido como fazer para o trabalho da minha memória, sem contudo dar uma forma codificada para ela. O treinamento técnico estava me acrescendo uma forma, que eu ainda estava aprendendo como preencher com a minha memória. Quando, então, iniciei o trabalho com objetos, pude com mais facilidade unir tudo isso, além de colocar também a ação vocal (que até então só estava sendo trabalhada tecnicamente) e ainda ter em mãos um material codificando para “vesti-lo”, transformá-lo. Foi muito importante para me educar a ter percepção daquilo que estou fazendo. Embora eu tivesse uma pessoa olhando de fora e me ajudando a detectar as ações principais, essa função também cabia a mim mesma. Outra coisa é aprender a estar envolvida com a ação, sem perder o olhar distanciado do ator, pra depois saber como repetir as ações mais importantes, preenchidas de sua forma e de seu coração. Outro ponto foi o de aprender a ser também passivo. O contato com algo externo a meu corpo fez com que eu treinasse como ativar esse objeto ( principalmente porque iniciamos o trabalho com objetos pesados e fortes), mas também como, simultaneamente, me deixar ativar por ele. Acho que é algo parecido com o princípio das lutas marciais, onde, para não se ferir, você vai a favor do golpe, e não contra ele. Uma grande porta me foi aberta – o diálogo com os objetos é infinito e passei a entender que é possível estabelecer diálogo com qualquer objeto (ou mesmo outros estímulos) e caminhar sozinha (Entrevista concedida em 1997).

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